19.6.13

Caminhadas de Outono

Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água...

(Chico Buarque)


Apresentados os diversos pontos-de-vista de comunicadores, sociólogos, politólogos, formadores de opinião, jornalistas, ouso partilhar uma pequena reflexão sobre o movimento das ruas, que estou chamando Caminhadas de Outono. Talvez, com a esperança de que, ao menos no calendário, as estações se sucedem e chegaremos à Primavera. Essas caminhadas das ruas,  ilustradas pelas fumaças dos gases, fogos, balas, spray de pimenta, vinagres podem levar à primavera de nosso país. Os manifestantes querem acordar o gigante, que adormecia.
Todos nos sentimos envolvidos e atingidos pela crise que se mostra no distanciamento entre a sociedade civil e o Estado. Esse fato não é novo, faz parte da história da nossa colonização. A governança faz ensaios de acertos e erros. Tem mais errado que acertado. As caminhadas das ruas, traduzidas no que se identifica como movimentos dos diferentes segmentos sociais, expressa o sentimento de indignação contido durante muito tempo e que começa a explodir face ao descaso no qual a população foi submetida.
A canção de Chico Buarque é ilustrativa: E qualquer desatenção, faça não pode ser a gota d'água... E aconteceu. A gota d’água foi o preço das passagens. Seria ingenuidade, no entanto, ficarmos restritos aos 20 centavos do aumento dos bilhetes. Na
nossa história, a dominação do Estado sobre os cidadãos foi contínua, forte e astutamente dissimulada. As caminhadas das ruas, neste outono, evidenciam o nível de descontentamento, de desconforto, de inconformidade com as condições de saúde, habitação, transporte, educação em que se encontra a maioria da população.
          Não concordo com o espetáculo midiático no qual, muitos se sentem a vontade para fazer a crítica pela crítica, confundindo meios e fins. Não sou partidária de Maquiavel, que justifica o uso de qualquer meio para atingir o fim proposto. Nada explica a depredação de bens e serviços públicos, pois a revolta ocorre, também, pelo mau uso das verbas públicas.
          O protesto é afirmativo como ato civil, porque mostra a capacidade organizativa da população e o uso inteligente das redes sociais, mas pode se tornar negativo, quando usa a violência, provocando a prepotência já instalada no aparato de segurança do Estado. A que leva tudo isso? Ao fortalecimento dos conservadores e aos discursos moralistas. É preciso saber o limite entre a ação da cidadania e da revolta política e a atuação aniquiladora dos que desejam apenas destruir, sem um foco legítimo para essa atitude.
          O amadurecimento de uma sociedade ocorre na medida em que é capaz de lutar por seus direitos, tendo presente o sentido de suas reivindicações. Quebradeira geral
não produz resultado satisfatório. A ideia é reconstruir o Brasil e não destruí-lo. Lutou-se muito para resgatar a democracia sequestrada pela ditadura cívico-militar. Ela ainda está tenra, aprendiz, dá seus primeiros passos.
          Que as Caminhadas de Outono expressem o soluço segurado na garganta de uma sociedade sufocada. Não quero contemplar nas ruas o cenário de uma guerra de todos contra todos. Desejo, antes, acreditar que essas caminhadas conduzam à Primavera desse Gigante, que já não dorme mais.
 Cecilia Pires

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