A
FARSA DA DEFESA DA PÁTRIA
Cecilia Pires
Na Escola Normal Medianeira, em Santiago do
Boqueirão, saindo da adolescência, ouvi os primeiros murmúrios de que o ‘perigo
vermelho’ estava afastado do Brasil. Que os comunistas haviam sido derrotados
pelas forças da Ordem (?) e que voltaria a paz e a harmonia entre todos os
brasileiros.
Como militante da JEC – Juventude Estudantil Católica – me
assaltava sempre o espírito crítico e questionei o que estava ocorrendo com o
episódio da denominada “Revolução”. As superioras da Escola, de modo evasivo,
impediam o debate e depois objetivamente proibiram as reuniões do núcleo da JEC
na Escola, bem como as publicações críticas e até ingênuas dos estudantes no
Quadro Mural da AME – Associação Medianeira de Estudantes.
Muitas falas se fazem ouvir, neste momento, em que o
calendário marca os 50 anos do Golpe que exigiu ser reconhecido como Revolução.
Alguns historiadores analisam que 50 anos é um tempo relativamente curto para
avaliação de fatos e entendimento da conjuntura. É possível, mas para quem
viveu, sofreu e sobreviveu aos horrores dos “anos de chumbo” foi um tempo muito
longo os 21 anos em que a democracia foi violada pelo autoritarismo patrocinado
por militares e civis em nosso País.
Todo o discurso ‘em defesa da Pátria’ registra a atitude
prepotente em que os identificados como adversários ou inimigos do governo eram
considerados inimigos da Pátria. Na minha pequena cidade, uma colega de Escola
ao sair pela manhã para a aula, depara-se com seu quintal tomado por soldados,
para prender seu pai, um líder político de oposição, um perigo para a Pátria e
o bem-estar das famílias. Uma cena dos filmes de guerra!
Um amigo do meu pai, cujo patrimônio perdera por conjunturas
econômicas, tornara-se um comentador ingênuo das lides políticas e frequentador
de rodas populares. Elogiava muito Brizola. Foi preso e advertido por expressar
opiniões contrárias aos ditames dos autores do golpe.
Na continuidade dos acontecimentos saio de um lugar tomado
por quartéis e generais grandiloquentes e vou para outro, Santa Maria, para
prestar vestibular na UFSM, uma cidade tomada por quartéis e civis
conservadores, leais aos “revolucionários”, salvadores da Pátria. Imaginem o
que significava o fino exercício de lógica e argumento nas aulas de Filosofia,
onde os padres Palotinos nos estimulavam ao exercício da crítica! O
protagonismo desses professores merece meu respeito histórico e político, pois
não se deixaram intimidar pelo pessoal da ASI (Assessoria de Segurança e
Informação), que ocupava um andar próximo ao Gabinete do Reitor. Era a presença
física do Estado Autoritário na Academia.
Um dos padres palotinos organizou no ano de 68, o Grupo
Universitário, que depois se tornou o MUSM, Movimento Universitário de Santa
Maria, com o objetivo de reunir estudantes e discutir questões acerca da
Universidade Brasileira, bem como celebrar o culto religioso para os que
desejassem participar. Foi concedido o porão da Casa do Estudante. Mas um
Reitor extremamente autoritário, certamente incentivado pelos generais de
Brasília, exigiu a retirada dos estudantes daquele local e assim fomos
acolhidos numa casa de família por uma Grande Senhora, que viabilizou a
continuidade dos encontros dos universitários, que não queriam mais do que
debaterem os problemas da política, as relações da Igreja com o Estado, a
importância de uma Universidade crítica e competente e até mesmo a sua condição
de sujeitos nessa conjuntura nacional.
Por que relato tudo isso no dia em que o
calendário assinala os 50 anos do Golpe? Porque desejo me associar às
comemorações em defesa da Democracia, para que não haja mais o espetáculo da
vilania e da tortura e para que os que nasceram depois de 64 saibam que aqueles
que amordaçaram a democracia não prestaram nenhum serviço à Pátria. Ao
contrário, associaram-se com empresários nacionais e estrangeiros que
financiaram e se locupletaram do sistema ditatorial, perseguindo, torturando e
matando os inimigos do Regime.
É necessário, portanto, desconstruir esse discurso
de defesa da pátria, que pode emocionar os ingênuos e os mal informados, mas
não pode se perenizar nas consciência cívica de quem quer um Brasil livre,
soberano e justo.