29.8.14

Inquietudes e Contradições



Como ouvir o pedido de socorro de uma criança, sendo trucidada pelo pai e pela madrasta, sem estremecer? Que sentimos ao assistir que a moça assassina dos pais pode passar para o regime semi-aberto por “bom comportamento”? Como reagir diante das imagens de idosos que denunciam os maus tratos dos filhos e parentes? Que nome daremos a atitudes dessas pessoas? Sim, porque por mais que queiramos chamá-los de feras, de monstros ou adjetivos do gênero, não identificamos feras e monstros fazendo isso para seus semelhantes.
O ódio, o rancor, a raiva, o medo, a intolerância são sentimentos que encontramos entre os humanos. Os animais não constroem qualquer plano de extermínio, nem são capazes de pensar numa cilada noturna, como a filha adentrar o quarto dos pais, conduzindo os assassinos. Os bichos, assim chamados por nós, não inventam uma suposta viagem com uma criança para, afinal, dar-lhe uma dose letal e enterrá-la após salpicar seu corpo com soda cáustica. Nem mesmo jogam crianças pela janela, mentindo que tudo não passou de um acidente. Os bichos não sabem mentir.
Somos inquietos e contraditórios todo o tempo. Na maioria das vezes, nossas contradições resultam de nossas inquietudes. Por motivos diversos, estamos apreensivos diante dos acontecimentos, das notícias, das relações que estabelecemos, dos projetos que elaboramos, sejam eles de construção ou de destruição.
Tudo concorre para que a inquietude se instale em nossa mente, produzindo em nós atitudes contraditórias, em que negamos o que acreditamos e afirmamos o que nos produz dúvidas. Nada estranho. Tudo dentro da expectativa que os humanos construíram para si mesmos.
Desde um pequeno conflito doméstico que pode se tornar imenso e resultar em aniquilamentos, passando por dissabores no mundo da vida, até um grande enfrentamento bélico, tudo demonstra nossa inteligência para construir ou para destruir. Mostramos nossa grandiosidade e perspicácia em fazer críticas, em analisarmos comportamentos e conjunturas das situações e evidenciamos nossa pequenez ao dirigirmos nossa metralhadora para eliminar o que nos incomoda e aparece para nós como desconforto e empecilho, sejam filhos, pais, idosos e povos.
Afinal, como queremos pensar a paz e a concórdia no mundo, o encontro dos povos, a harmonia das famílias, se tudo o que fizemos concorre para a desavença, a desarmonia e o confronto?!
Não se trata de termos atitudes passivas e conformistas com o que nos agride e desagrada, mas trata-se de avaliarmos com equilíbrio e tirocínio as dimensões alargadas das situações familiares, sociais, políticas, econômicas e culturais para que possamos entender-nos e entender o mundo que construímos, sem nos sentirmos melhores ou piores que os outros sujeitos. Precisamos, talvez, pensar em uma lógica de companheirismo, de tolerância e de perdão, sem o esquecimento das injustiças, para que as vítimas não se tornem pessoas abandonadas pela nossa memória.
A justiça pode afirmar a vida para os sujeitos se, efetivamente, se tornar justa. Desejamos, portanto, que as crianças não gritem mais por socorro, pela aflição causada pelos pais e que os pais jovens ou idosos não temam as ações de seus filhos. É possível querer também que os povos, mesmo com suas contradições, não tragam inquietudes entre si. Continuamos, como humanos, plenos de defeitos, carentes, mas podemos nos permitir sermos melhores, desejosos de uma vida justa.