Como
ouvir o pedido de socorro de uma criança, sendo trucidada pelo pai e pela
madrasta, sem estremecer? Que sentimos ao assistir que a moça assassina dos
pais pode passar para o regime semi-aberto por “bom comportamento”? Como reagir
diante das imagens de idosos que denunciam os maus tratos dos filhos e
parentes? Que nome daremos a atitudes dessas pessoas? Sim, porque por mais que
queiramos chamá-los de feras, de monstros ou adjetivos do gênero, não
identificamos feras e monstros fazendo isso para seus semelhantes.
O
ódio, o rancor, a raiva, o medo, a intolerância são sentimentos que encontramos
entre os humanos. Os animais não constroem qualquer plano de extermínio, nem
são capazes de pensar numa cilada noturna, como a filha adentrar o quarto dos
pais, conduzindo os assassinos. Os bichos, assim chamados por nós, não inventam
uma suposta viagem com uma criança para, afinal, dar-lhe uma dose letal e
enterrá-la após salpicar seu corpo com soda cáustica. Nem mesmo jogam crianças
pela janela, mentindo que tudo não passou de um acidente. Os bichos não sabem
mentir.
Somos
inquietos e contraditórios todo o tempo. Na maioria das vezes, nossas
contradições resultam de nossas inquietudes. Por motivos diversos, estamos
apreensivos diante dos acontecimentos, das notícias, das relações que
estabelecemos, dos projetos que elaboramos, sejam eles de construção ou de
destruição.
Tudo
concorre para que a inquietude se instale em nossa mente, produzindo em nós
atitudes contraditórias, em que negamos o que acreditamos e afirmamos o que nos
produz dúvidas. Nada estranho. Tudo dentro da expectativa que os humanos
construíram para si mesmos.
Desde
um pequeno conflito doméstico que pode se tornar imenso e resultar em aniquilamentos,
passando por dissabores no mundo da vida, até um grande enfrentamento bélico,
tudo demonstra nossa inteligência para construir ou para destruir. Mostramos
nossa grandiosidade e perspicácia em fazer críticas, em analisarmos
comportamentos e conjunturas das situações e evidenciamos nossa pequenez ao
dirigirmos nossa metralhadora para eliminar o que nos incomoda e aparece para
nós como desconforto e empecilho, sejam filhos, pais, idosos e povos.
Afinal,
como queremos pensar a paz e a concórdia no mundo, o encontro dos povos, a
harmonia das famílias, se tudo o que fizemos concorre para a desavença, a
desarmonia e o confronto?!
Não
se trata de termos atitudes passivas e conformistas com o que nos agride e
desagrada, mas trata-se de avaliarmos com equilíbrio e tirocínio as dimensões
alargadas das situações familiares, sociais, políticas, econômicas e culturais
para que possamos entender-nos e entender o mundo que construímos, sem nos
sentirmos melhores ou piores que os outros sujeitos. Precisamos, talvez, pensar
em uma lógica de companheirismo, de tolerância e de perdão, sem o esquecimento
das injustiças, para que as vítimas não se tornem pessoas abandonadas pela
nossa memória.
A
justiça pode afirmar a vida para os sujeitos se, efetivamente, se tornar justa.
Desejamos, portanto, que as crianças não gritem mais por socorro, pela aflição
causada pelos pais e que os pais jovens ou idosos não temam as ações de seus
filhos. É possível querer também que os povos, mesmo com suas contradições, não
tragam inquietudes entre si. Continuamos, como humanos, plenos de defeitos,
carentes, mas podemos nos permitir sermos melhores, desejosos de uma vida
justa.