19.4.13

Índios e Controvérsias


Quando os índios, que não se chamavam índios, foram violados na chegada de Cabral, ainda não havia Parlamento no Brasil e nem o lugar era este país chamado Brasil.
Os anos se passaram e as formas de violência e aniquilação sobre os chamados “primitivos habitantes da nossa terra” continuaram. De uma terra “desconhecida” este lugar passou a Colônia de Portugal, e, depois de três séculos, tornou-se Império e proclamou-se a República. Com esta, surge outra organização social e política, em que o povo pode eleger seus representantes, inclusive o povo indígena.
Se isto ocorreu dessa forma, em que a democracia representativa permite que todos os segmentos sociais reclamem, protestem nas ruas, façam greves, entrem no Parlamento e acompanhem votações de interesse de classe, por que causa espanto e quase pavor a entrada na Câmara dos Deputados dos líderes indígenas?! Eles podem ou não protestar? O que se viu foi uma correria de parlamentares e demais presentes quando os líderes indígenas adentraram no plenário, o que foi denominado invasão. Agora é invasão... em 1500 foi descoberta... Sabemos que as palavras são habitadas pelos significados que demos a elas. Então, podemos refletir sobre o significado de invasão...
O que pediam os líderes indígenas? Que fosse retirada a PEC 215.  A Proposta de Emenda Constitucional 215/00 retira do Poder Executivo e passa para o Congresso a decisão final sobre a demarcação das terras indígenas no Brasil.
Mas até quando faremos uma espécie de círculo de fogo para determinar fronteiras geográficas e culturais, onde os povos indígenas deverão ficar restritos?! Eles estavam aqui desde o início, desde o “descobrimento”. Livres, sem algemas e sem a experiência da territorialidade canhestra e opressora. Eram denominados selvagens pelos civilizados invasores.
Esses civilizados atuais se espantam e correm apavorados diante dos líderes indígenas como se estivessem vendo os monstros dos filmes de terror.  E os parlamentares, lideranças dos civilizados, querem definir que os povos indígenas fiquem confinados em determinadas áreas e que não cabe negociação com seus líderes. Apenas a liderança do povo branco, civilizado, é quem pode definir onde os povos indígenas devem e podem viver.
Disse o Presidente da Câmara dos Deputados no seu arroubo de oratória parlamentar que “o respeito a esse plenário é inegociável”. Muito bem! E o respeito aos povos indígenas deve entrar nas tramas das negociações e interesses de outros, que não os próprios sujeitos da história?! Se o respeito fosse efetivamente inegociável, não veríamos no Parlamento as “figuras públicas” que vemos e que, inclusive, presidem o Parlamento Nacional. Isto não causa espanto e correria no plenário!!?
Mais um Dia do Índio, mais um 19 de abril, determinado pela consciência culpada do Estado, em que os povos indígenas têm pouco a comemorar... Talvez quizessem de presente suas terras apropriadas pela ganância dos expropriadores, sempre a serviço do grande capital.
Sabemos, no entanto, que eles não receberão esse presente. Algumas falas, endossadas pelo discurso vazio de promessas vãs, marcarão mais esse dia. Em todo caso, a eles nossa solidariedade e compromisso com uma luta legítima, ainda que não reconhecida por todas as lideranças da República. Que eles ainda tenham condições de ter uma vida boa e justa, prevista pela democracia para todos.

11.4.13

Construção


Observo a dedicação dos pássaros na construção do seu ninho. De forma paciente, dia a dia, trazem folhas, pequenos ramos para dar conforto aos filhotes que estão por nascer. O preparo do ninho, da casa, é um modo de preparar a chegada dos novos. A Vida precisa desse preparo, dessa acolhida.
Os pais também se envolvem no preparo da casa, com o cuidado necessário e carinhoso para receber a criança que está para nascer. Horas e horas dedicam-se a planejar, a calcular, a decidir sobre as mudanças a serem feitas para maior conforto de quem chega ao mundo. Pessoas e pássaros celebram a Vida. A consciência dos humanos e o instinto das aves se expressam de modo natural para abrigar os filhos e os filhotes.
Nesse cotidiano das minhas observações, registro os detalhes de uns e outros. As aves gorjeiam de galho em galho, talvez, procurando o material que produza mais maciez para o ninho em construção. As pessoas buscam, escolhem, criam espaços possíveis para a casa, que logo terá um novo habitante. Casas e ninhos se constroem com paciência, passo a passo, com esforço e, ouso afirmar, com alegria!
Da minha vitrine em que observo o mundo, vejo mais longe e constato que há os que não possuem casa, não construíram um ninho para abrigar a prole. Motivos, muitos. Razões, as de sempre. Adversidades materiais. Escolhas erradas? Talvez... Linha de pobreza ainda não superada? Pode ser... O constatável é a ausência desse lugar da intimidade, a casa, o ninho, onde se vive a mais genuína identidade consigo mesmo. Sentir-se em casa é estar à vontade. Um lugar de referência é a casa da gente. Um lugar que não é apenas a expressão de uma materialidade dura, mas uma significação de afetos e emoções. Quando se está triste, busca-se a casa. E quando se está alegre corre-se para casa, tudo para compartilhar a intimidade dos próprios segredos.
Parece que, quando envelhecemos, nos tornamos mais sérios, mais sábios e mais sensíveis. Será mesmo uma trilogia determinista, ou, a constatação de que temos um olhar diferente sobre a Vida? Nesse tempo, o da velhice, já construímos e participamos de muitas construções de casas e de ninhos e já vimos muitas des-construções. Até um pouco mais silenciosos (mais um s), na casa. Tudo isso nos permite acreditarmos na construção. Nossas opiniões e convicções se tornaram um pouco mais sérias, sábias, sensíveis e silenciosas. Ou não.
As aves continuam sua tarefa de construir ninhos para seus filhotes, os pais prosseguem na sua atitude de responsabilidade, construindo a casa para seus filhos. Os seres vivos manifestam a Vida de todas as formas e é importante que estejamos atentos para essa dinâmica. O cuidado com os que entram no mundo é o cuidado com a Vida. É o acolhimento dos novos seres.
Construir implica em cuidar da natureza. A construção precisa produzir uma cultura que esteja em acordo com a natureza. Crianças e pássaros necessitam de casas e ninhos. Os que preparam sua chegada tudo fazem para abrigá-los. Este preparo faz parte da espera.  Uma celebração da Vida como acontecimento.
 
11.04.2013

4.4.13

Um itinerário de sonho*

   Arrumei uma mala pequena, modesta como modestas eram as minhas posses, embora muito grandes os meus sonhos, que não cabiam naquela malinha. Com minha mãe rumei para a estação ferroviária, despedi-me dela, absorvendo seu olhar de encorajamento, adentrei o trem, acomodando mais meu corpo que meus pensamentos.
   Ao primeiro apito do trem assinalando a partida, senti que começaria um novo ciclo em minha vida. Esse sinal sonoro do trem demarcava o itinerário do meu sonho. O apito do trem diluiu-se na curva, antes da chegada ao primeiro lugarejo.
   Acomodada à janela, eu apreciava a paisagem bucólica, na placidez do seu silêncio. Retomava a imagem da minha pequena cidade, Santiago, que, momentos antes, deixara rumo a Santa Maria, onde faria vestibular na Universidade. Naquela época, a distância entre as duas cidades era longa o suficiente para pensar nos estudos feitos e para amainar a tensão por um momento novo.
   Pensava e divagava intensamente... Meus devaneios mergulhavam comigo na paisagem. Ao vir à tona, movida pelos apitos do trem, eu tomava conta da realidade, tentando assumir minha condição de passageira do futuro.
   As fuligens da locomotiva, chamada de
Maria Fumaça, pintavam meu braço apoiado na janela. Divertia-me com os arabescos instantâneos desenhados pelo carvão. Procurava estabelecer significados para eles. Começava a filosofar.
   Chegada em Santa Maria, imersão na cidade "grande", procura do lugar onde ocorreriam as provas. A Universidade Federal ainda não tinha esse esplendor de hoje. Em 1966, ocupava salas na Faculdade Imaculada Conceição. Ali foram realizadas as provas do vestibular. Provas dissertativas, nada de cruzinha, tudo no argumento, no raciocínio, a partir dos clássicos da filosofia.
   Resultado positivo. Aprovada no vestibular. Idas e vindas. Mais viagens de trem. Acomodações, acolhida generosa de familiares que receberam a novata acadêmica.
   Ano letivo iniciado. Aulas nas dependências da faculdade particular. Próximos anos, mudança para o Campus da Universidade. Burburinho alegre de estudantes, ônibus gratuito, trocas durante a viagem, refeições no restaurante universitário, lugar deconhecimento de novatos e veteranos, início de relações rápidas ou duradouras. Tudo ocorria neste mundo universitário, debate nas aulas, atividades nos diretórios acadêmicos, encontros nos bailes do Diretório Central. Alguns com uma vida mais confortável, outros, no limite da sobrevivência, mas na cabeça dos jovens dos anos 60 misturavam-se tanto o desejo de uma carreira profissional tranquila, como a ânsia por fazer justiça e mudar o mundo. Aí vivi minha juventude de estudante de filosofia, atenta ao que ocorria perto e ligada ao que acontecia longe.
   1968, ano importante no mundo estudantil. Protestos no Brasil e no mundo. Uma juventude aguerrida tanto na festa, quanto na luta. Esse era o meu entendimento e eu me associava a pessoas com essa visão.
    Na Universidade, surge o Grupo Universitário, com o objetivo de reunir os estudantes em torno de questões religiosas e comunitárias. É claro que o braço político dessas questões se manifestava em nossas reuniões, como a crítica ao regime militar. Um padre palotino assume com galhardia essa tarefa. O Grupo, mais tarde conhecido como MUSM, Movimento Universitário de Santa Maria, cresce em número e ações na Academia, o que causa reações tanto dos civis, como dos militares.
    Idas e vindas no Campus, aulas, reuniões, trocas, cumplicidades, anseios vários, temores muitos, tudo sincronizado pelo grande ideal de um país livre da ditadura, que mais uma vez se abateu sobre a República.
    Finda o tempo da graduação, 1969, dezembro. Discursos e apreensões, surge o ato institucional número 5. A democracia na universidade está moribunda. Formatura, generais, professores, contendas, agradecimentos, promessas, projetos de continuidade.
    1970, Vale Vêneto, o primeiro Acampamento do MUSM reúne os estudantes engajados na atividade pastoral e política na Universidade e se afirma no seu carisma de uma Igreja voltada às questões sociais. Ali convivemos debatendo nossas inquietudes, alguns já formados, outros ingressando na vida universitária. Mais um passo no meu itinerário.
    Busca de emprego, retorno à minha cidade, ânsia por ensinar o aprendido, paixão pela filosofia. O aprendizado com os padres palotinos fora quase um catecumenato filosófico. Muita vivência, muita alegria, muita partilha, muita seriedade.
    Essa caminhada filosófica vive seus paradoxos. Vejo-me lecionando na Universidade, ao mesmo tempo em que me assusta tamanha responsabilidade. 1973, abre concurso na Universidade Federal de Santa Maria. Inscrevo-me. Uma vaga. A ousadia, parceira da obstinação rege meu destino. Sei da qualificação dos concorrentes.
Cumpro o ritual das provas. Classificada, espanto e júbilo me possuem. Contrato assinado, assumo a tarefa. O começo de tudo é sempre desafiador. Tijolo sobre tijolo. Ah, me vem a imagem do Chico, "num desenho lógico..." E era isso, a Filosofia, lógica, pensamento, verdade.
    Vieram invernos e verões, outonos e primaveras e vivi na Universidade muitas estações. Sementes germinadas, frutos colhidos, saberes partilhados, alarguei meu mundo.
   Aposentei. Deixei de fazer algumas coisas para fazer outras. Conquistas possíveis, perdas irreparáveis, alegrias muitas, aventuras todas.
    A Universidade foi um eixo de profundas raízes no ensino superior, neste e em outros estados. Polo convergente de muitas rotas, diferentes tribos, várias mentalidades, diversos olhares, múltiplas perspectivas. Sem essa âncora de uma universidade pública, um estudante pobre do interior não teria acesso à formação universitária. O protagonismo dos precursores lembra o quero-quero, a ave que assume o querer de sua terra. Assim foi feita a Universidade.
    Hoje, acolho a ousadia da menina tímida, esmaecida no tempo. Revivo a solenidade do começo, a entrada no trem rumo ao desconhecido. Não se ouve mais o apito dos trens. As tecnologias modernas produzem outros sons. Pelas viagens feitas, sei um pouco mais as lições da vida e entendo que os sonhos de agora também não cabem nos limites de uma mala modesta, enquanto os itinerários forem se realizando.
* Crônica premiada no Projeto Volver/UFSM - Concurso de Crônicas - 2012