19.11.12

A última aparição de um Professor

Colocou o cigarro na boca, esperando como se ele acendesse espontaneamente. Lentamente, riscou o fósforo e a chama iluminou seu rosto carregado de preocupações.

Não se sentia um fraco, mas temeroso pelo que poderia ocorrer. Afinal, tudo o que projetara era ser um ótimo professor, competente, organizado e, sobretudo responsável pela tarefa que assumira. Desejava muito estimular os alunos a pensarem, a construírem valores, a serem autônomos.

Mas o que conseguira? A raiva e o deboche dos alunos adolescentes, a crítica dos colegas, a severidade das chefias e a cobrança dos pais.
Estaria mesmo enganado em seus projetos e sonhos?!

O que faria a partir de agora? Procuraria uma nova escola para trabalhar? Enviaria currículo para realizar outras atividades? Desistiria da profissão? Com o que se ocuparia?

Ernesto refletia e vivia uma perplexidade singular. Havia se preparado para ser professor, dedicar-se à educação da juventude e por um momento tudo ruiu, em consequência de uma atitude tomada, face ao comportamento de um aluno, que exacerbara no desrespeito. Foi rígido sustentado em sua coerência como profissional. Não poderia admitir o aniquilamento a sua pessoa. Como ser tolerante com a ausência de uma civilidade mínima em sala de aula?! A serenidade requer firmeza e assim agiu.
Retirou o aluno insolente da sala de aula e o enviou à autoridade competente com a devida informação sobre o acontecido.

Ao chegar à escola para ministrar as aulas previstas, Ernesto recebeu da secretária um aviso de que a Diretora desejava falar-lhe. Dirigiu-se a sala onde os alunos o esperavam e no intervalo foi ao encontro da Diretora, já pensando no teor da conversa. Marina recebeu-o com uma amabilidade artificial, convidando-o a sentar-se. E sem maiores delongas iniciou o diálogo:

– Então Ernesto estás com problemas com os alunos?

Ao que ele respondeu, sem hesitar:

– Problemas com os alunos, não. Apenas retirei Plinio da sala depois que ele me desacatou, descontente com a nota da prova. Não poderia permitir que ele me desrespeitasse, do contrário seria impossível continuar lecionando na turma.

– Lamento, Ernesto, terás que deixar de lecionar aqui. Sabes, o General Henrique, o pai do Plinio, procurou a alta direção da mantenedora e inconformado com o que ocorreu com o filho ameaçou não só retirá-lo da Escola como fazer uma campanha junto aos conhecidos para retirarem seus filhos da escola, se tu não fosses demitido. A direção decidiu a favor do general. A mim coube te dar a noticia.

– Obrigada, Marina, por me informar. Concluirei as aulas nas turmas de hoje e amanhã voltarei para buscar meu material.

A distância percorrida até a sala de aula não poderia ser maior, naquele momento. Ernesto estava atônito... Então todos os anos de trabalho dedicado à
Escola no cumprimento de várias tarefas, solicitadas pela direção, além do trabalho regular, não foram suficientes para escolherem por ele, pela sua dignidade?! Deixaram-se subornar pelas ameaças de um pai que não soube educar seu filho? O que fizera de sua vida esse tempo todo? Que lições havia deixado aos alunos?

Recolhia seu material no escaninho, olhava pausadamente cada pasta dos assuntos trabalhados, quando ouviu um burburinho na porta da sala dos professores. Voltou-se e observou movimento na fechadura. Caminhou e abriu a porta. Havia um grupo grande de alunos, reconheceu-os de várias turmas. Um deles com jeito de líder, tomou a dianteira e falou:

– Professor Ernesto, queremos que fique, não vá embora. O senhor é o melhor professor de matemática que tivemos. Não ligue para o Plinio, ele é mal educado mesmo. Por favor, fique!

Seu coração não foi tão exato como seus cálculos e acelerou, além do que ele gostaria. Respirou profundamente e disse: - Obrigado, Cesar. Obrigado a todos por terem vindo. Eu não escolhi ir embora. A Escola decidiu assim. Estou grato pela atenção de vocês.

Os alunos reagiram, utilizando sua linguagem de indignação. Retiraram-se.
Ernesto concluiu o que fora fazer, encontrou nos corredores um ou outro colega que o cumprimentou, evasivamente.

Ao alcançar o portão pelo qual passara quase todos os dias por muitos anos, recordou-se da solenidade de formatura, dos discursos, do juramento e renovou dentro de si o propósito - manter a dignidade é condição essencial para continuar vivendo. Podia ser a última aparição do professor, mas o homem não desapareceria.

1.10.12

Etapas da vida


Interessante e curioso, as etapas vividas pelos humanos. Uma manhã ensolarada, em que passava em frente a uma creche, observei vários bebês em seus carrinhos tomando sol, quase de uma maneira comportada como se entendessem a necessidade de ali estarem, de  modo obediente. As pessoas encarregadas de cuidá-los estavam atentas para qualquer mudança de atitudes, nada imprevisível.

Continuei meu roteiro e adentrando em outra rua, deparo-me com outro cenário, quase semelhante ao anterior. Vejo várias pessoas alinhadas, disciplinadamente, em suas cadeiras, algumas de roda, tomando sol sob o olhar das cuidadoras.

Deixo que meu pensamento tome conta da realidade observada e começo a refletir sobre as etapas da vida. Então é isso? A pessoa começa e termina, sob cuidados, sentada em carrinhos e cadeiras, sob a vigília de terceiros?! A vida da urgência, do custo, do trabalho impede que as famílias cuidem dos seus bebês e dos seus idosos?! Quando esse cuidado é apenas por momentos do dia, ainda é razoável, pois há a expectativa do encontro afetivo no retorno para casa. Mas se esse afastamento familiar for permanente, como no caso dos velhos?!  Parecem pessoas ali depositadas por não terem mais lugar na família. Efetivamente, aparece a sensação de abandono, que não é maior, porque há pessoas pagas, com especialistas de todo tipo, para exercerem a tarefa de cuidá-las.

Fico a pensar no que foi a vida desses idosos, dos filhos que criou, dos netos que cuidou, das noites não dormidas, dos trabalhos exercidos para chegarem nessa etapa de suas vidas sem lugar, sem o afeto dos que lhes são próximos, sem vinculações com a história que viveram.

Retorno a perspectiva da minha imaginação para as crianças da creche. Qual será o futuro delas? Crescerão, tomarão conta de suas vidas, terão filhos e netos e depois serão conduzidas a um lugar de cuidadoras, tomando sol novamente, não mais nos seus carrinhos, mas, agora, em outras cadeiras, de roda ou não, quem sabe?!

Nada há de inacreditável nisso. O que me produz impacto é o fato da fragilidade do vínculo familiar. As conquistas da modernidade, que são conquistas do capitalismo e da tecnologia, produziram várias facilitações para a vida cotidiana e isso é ótimo. O que analiso é que tudo isso não substitui o abraço, o carinho familiar, o olhar de atenção, o tempo da escuta, da fala, daquilo que não foi dito. E, isso, tecnologia nenhuma substitui. A criança, ao retornar para casa, quer e precisa do carinho de seus pais. O idoso, depois de toda uma vida de trabalho e sacrifícios, espera o reconhecimento dos seus familiares. Não é a quantidade de tempo que importa, mas a qualidade desse tempo de convivência, que produz significações.

Talvez tenhamos que revisar as posturas e os valores face a essas relações, que não podem ser apenas utilitárias. As pessoas não devem ser colocadas como objetos imóveis para não perturbarem o sossego familiar.

Gente dá trabalho, preocupação, traz problemas, mas não é por isso que deva ser retirada do circuito da família, depois de ter prestado grandes contribuições. Todos nós passamos e passaremos por essas etapas da vida. Como gostaríamos de receber cuidados? Junto dos nossos, com quem convivemos a vida toda, ou à distância, entregue a profissionais estranhos?

À medida que vencemos etapas nos aproximamos de outros momentos de nossas vidas. Vale a pena pensar sobre nossos laços de afeto, laços que o tempo não deveria romper.

25.8.12

O Vestido Roto



A menina desceu da árvore; o galho, no qual estava sentada, quebrou-se. Prendeu uma ponta do vestido e com o esforço feito para se desvencilhar do galho rasgou o vestido. Raivosa ela puxou mais o galho enrolado no vestido e rasgou mais a roupa. Conseguiu descer e postou-se no chão, enrubescida.

Logo, ouve a voz da mãe que a chamava para auxiliar nas tarefas da casa. Não responde, pois quer se esconder para não ser vista com o vestido naquele estado.

Corre para seu quarto para trocar-se, quando ouve o barulho na porta e sua mãe irrompe quarto a dentro. Que ocorreu, Camila? Está trocando de roupa, agora?! Camila olha a mãe entre temerosa e raivosa e responde. Nada. Só queria trocar o vestido. Por quê? Insiste a mãe; não mente para mim, o que houve?

Do rosto da menina o olhar da mãe se dirige para algo amontoado no chão. Vai até ali e recolhe. Abre e vê o vestido rasgado. Olha para a menina, mostrando e perguntando, ao mesmo tempo.

O que você fez? Como rasgou seu vestido?

A menina corre chorando em direção à mãe, arranca de suas mãos o vestido e diz. Deixa! Não mexe nas minhas coisas.

A mãe sacode a menina pelos ombros e grita: Fala a verdade. Como rasgou o vestido?

Camila pensa em contar, e, ao mesmo tempo, teme o que pode suceder, mas balbucia: - Estava brincando na ameixeira e fui descer, meu vestido enroscou no galho. Não consegui soltar sem puxar e rasgou.

- Por que foi subir na árvore? Não sabe que isso é brincadeira de menino? Como uma menina sobe em árvore?!

Camila nada fala e pensa nas futuras proibições em relação as suas brincadeiras.

A mãe vocifera: - Você está de castigo. Sem brincar por uma semana e não terá um novo vestido para a festa da Escola.

A menina fecha a porta do quarto, logo que a mãe sai, e atira-se na cama a chorar... Por que gente grande não entende as crianças, pensa em meio aos seus soluços. O galho não sabia que iria rasgar meu vestido. Eu não queria estragar meu vestido. Só queria brincar. Por que vou ser castigada?! Se agora que sou criança eu não brincar, quando então?!

No domingo, para ir à festa da Escola, Camila não tinha um vestido novo, como as colegas. Pensou em não ir. Mas, foi ao seu pequeno armário, viu alguns vestidos usados, já doados por gente caridosa, e escolheu o que estava melhor. Sua condição de pobreza não a impedia de ter bom gosto, de desejar se sentir bonita como as demais meninas de sua idade. Vivendo nas cozinhas e dependências de empregados, observava o desfilar das filhas dos patrões de sua mãe.

Vestiu-se e saiu de seu quarto para encontrar a mãe, que a levaria à Escola.

Súbito, tocam na porta. Sua mãe vai abrir. Quem aparece? Adélia, sua madrinha. Carrega um pacote na mão. Abraça Camila e entrega o pacote. Quero vê-la bonita na festa da Escola. Adélia se dedicava a pequenas costuras e recebia alguns cortes de tecido de suas clientes. Pensava sempre em Camila, sua afilhada, que vivia com dificuldades, dado a condição de sua mãe, empregada doméstica. Toda vez que podia, fazia algo para a menina. Desta vez, havia lembrado da festa, na Escola, e apressou-se em fazer um vestido novo para ela.

Camila agradece, abre o pacote. Está ali um lindo vestido, enfeitado com rendas, no tom rosa que ela gosta. Corre para abraçar a madrinha; seus olhos são contas úmidas. Agora, suas lágrimas são de alegria.



Cecilia Pires









4.6.12

Conjeturas

Ouvindo Elis


O sinal está fechado para nós?!
Quem dará o toque,
para que os caminhos se abram
e se alarguem
e nos conduzam para o reencontro?!
ou novos encontros?!


Apesar de termos feito tudo o que fizemos
ainda somos os mesmos
É isso mesmo?
Apenas repetimos nossos pais?
mudamos rumos,
trocamos coisas,
cambiamos de amores,
plantamos flores
e que colhemos?!


Derrubamos muros,
construímos pontes,
escolhemos lugares,
vislumbramos horizontes
sem fronteiras físicas


mas ainda somos os mesmos
como nossos pais...


E o sinal continua fechado
para nós, que, agora,
já não somos jovens?

7.3.12

MINHA FALA



Eu queria sair silenciosa, como entrei. Com calma e alegria. É um pouco isso que sinto, no momento.
Estou tranquila e feliz. O tempo que passei aqui na Unisinos foi de reflexão e construção teórica, com muita intensidade. Foi o meu segundo tempo, depois da UFSM, de onde saí após 25 anos de trabalho. Com os 15 anos aqui vividos e trabalhados, comemoro os 40 anos de um tempo de docência e pesquisa, que  foi o tempo do meu aprendizado filosófico.
Agora, abre-se um novo ciclo. Será um tempo de pensar com mais vagar. É o tempo do kairós, da festa. Como fala a canção ”ando de vagar, porque já tive pressa”.  E é isso.
Agradeço a meus colegas, profundamente a homenagem desse momento. Na pessoa do caro colega e amigo, Marcelo Aquino, dos professores Coordenadores Adriano Brito e Alfredo Culleton  saúdo a cada um. Meu abraço especial e meu agradecimento pelo convívio, pelo debate, pelas trocas.
De modo especial reitero minha gratidão ao Professor José Ivo Folmann que, desde o início, confiou na minha capacidade de pesquisa e me viabilizou horas para essa tarefa, quando ainda não havia o Curso de Pós-Graduação em nossa área.
Eu acredito que a juventude com a qual partilhamos nossas questões e compreensões filosóficas é um bom parceiro de partilha nesse nosso saber e aprender.  Então esse convívio com os estudantes de todos os níveis é muito  profícuo e valida a nossa vida filosófica.
No simpósio que está ocorrendo sobre as questões do subjetivo e do objetivo evidencia-se essa tarefa do pensar juntos.
Com isso encerro, saudando a todos e agradecendo às pessoas de minha família, o Humberto, meu companheiro, a Adriane, minha filha, e confirmo o que disse o nosso grande Guimarães Rosa: ‘Mestres não é quem sempre ensina, mas quem de repente , aprende. E aprendi muito aqui.
Muito obrigada
Em 09.11.2011