4.4.13

Um itinerário de sonho*

   Arrumei uma mala pequena, modesta como modestas eram as minhas posses, embora muito grandes os meus sonhos, que não cabiam naquela malinha. Com minha mãe rumei para a estação ferroviária, despedi-me dela, absorvendo seu olhar de encorajamento, adentrei o trem, acomodando mais meu corpo que meus pensamentos.
   Ao primeiro apito do trem assinalando a partida, senti que começaria um novo ciclo em minha vida. Esse sinal sonoro do trem demarcava o itinerário do meu sonho. O apito do trem diluiu-se na curva, antes da chegada ao primeiro lugarejo.
   Acomodada à janela, eu apreciava a paisagem bucólica, na placidez do seu silêncio. Retomava a imagem da minha pequena cidade, Santiago, que, momentos antes, deixara rumo a Santa Maria, onde faria vestibular na Universidade. Naquela época, a distância entre as duas cidades era longa o suficiente para pensar nos estudos feitos e para amainar a tensão por um momento novo.
   Pensava e divagava intensamente... Meus devaneios mergulhavam comigo na paisagem. Ao vir à tona, movida pelos apitos do trem, eu tomava conta da realidade, tentando assumir minha condição de passageira do futuro.
   As fuligens da locomotiva, chamada de
Maria Fumaça, pintavam meu braço apoiado na janela. Divertia-me com os arabescos instantâneos desenhados pelo carvão. Procurava estabelecer significados para eles. Começava a filosofar.
   Chegada em Santa Maria, imersão na cidade "grande", procura do lugar onde ocorreriam as provas. A Universidade Federal ainda não tinha esse esplendor de hoje. Em 1966, ocupava salas na Faculdade Imaculada Conceição. Ali foram realizadas as provas do vestibular. Provas dissertativas, nada de cruzinha, tudo no argumento, no raciocínio, a partir dos clássicos da filosofia.
   Resultado positivo. Aprovada no vestibular. Idas e vindas. Mais viagens de trem. Acomodações, acolhida generosa de familiares que receberam a novata acadêmica.
   Ano letivo iniciado. Aulas nas dependências da faculdade particular. Próximos anos, mudança para o Campus da Universidade. Burburinho alegre de estudantes, ônibus gratuito, trocas durante a viagem, refeições no restaurante universitário, lugar deconhecimento de novatos e veteranos, início de relações rápidas ou duradouras. Tudo ocorria neste mundo universitário, debate nas aulas, atividades nos diretórios acadêmicos, encontros nos bailes do Diretório Central. Alguns com uma vida mais confortável, outros, no limite da sobrevivência, mas na cabeça dos jovens dos anos 60 misturavam-se tanto o desejo de uma carreira profissional tranquila, como a ânsia por fazer justiça e mudar o mundo. Aí vivi minha juventude de estudante de filosofia, atenta ao que ocorria perto e ligada ao que acontecia longe.
   1968, ano importante no mundo estudantil. Protestos no Brasil e no mundo. Uma juventude aguerrida tanto na festa, quanto na luta. Esse era o meu entendimento e eu me associava a pessoas com essa visão.
    Na Universidade, surge o Grupo Universitário, com o objetivo de reunir os estudantes em torno de questões religiosas e comunitárias. É claro que o braço político dessas questões se manifestava em nossas reuniões, como a crítica ao regime militar. Um padre palotino assume com galhardia essa tarefa. O Grupo, mais tarde conhecido como MUSM, Movimento Universitário de Santa Maria, cresce em número e ações na Academia, o que causa reações tanto dos civis, como dos militares.
    Idas e vindas no Campus, aulas, reuniões, trocas, cumplicidades, anseios vários, temores muitos, tudo sincronizado pelo grande ideal de um país livre da ditadura, que mais uma vez se abateu sobre a República.
    Finda o tempo da graduação, 1969, dezembro. Discursos e apreensões, surge o ato institucional número 5. A democracia na universidade está moribunda. Formatura, generais, professores, contendas, agradecimentos, promessas, projetos de continuidade.
    1970, Vale Vêneto, o primeiro Acampamento do MUSM reúne os estudantes engajados na atividade pastoral e política na Universidade e se afirma no seu carisma de uma Igreja voltada às questões sociais. Ali convivemos debatendo nossas inquietudes, alguns já formados, outros ingressando na vida universitária. Mais um passo no meu itinerário.
    Busca de emprego, retorno à minha cidade, ânsia por ensinar o aprendido, paixão pela filosofia. O aprendizado com os padres palotinos fora quase um catecumenato filosófico. Muita vivência, muita alegria, muita partilha, muita seriedade.
    Essa caminhada filosófica vive seus paradoxos. Vejo-me lecionando na Universidade, ao mesmo tempo em que me assusta tamanha responsabilidade. 1973, abre concurso na Universidade Federal de Santa Maria. Inscrevo-me. Uma vaga. A ousadia, parceira da obstinação rege meu destino. Sei da qualificação dos concorrentes.
Cumpro o ritual das provas. Classificada, espanto e júbilo me possuem. Contrato assinado, assumo a tarefa. O começo de tudo é sempre desafiador. Tijolo sobre tijolo. Ah, me vem a imagem do Chico, "num desenho lógico..." E era isso, a Filosofia, lógica, pensamento, verdade.
    Vieram invernos e verões, outonos e primaveras e vivi na Universidade muitas estações. Sementes germinadas, frutos colhidos, saberes partilhados, alarguei meu mundo.
   Aposentei. Deixei de fazer algumas coisas para fazer outras. Conquistas possíveis, perdas irreparáveis, alegrias muitas, aventuras todas.
    A Universidade foi um eixo de profundas raízes no ensino superior, neste e em outros estados. Polo convergente de muitas rotas, diferentes tribos, várias mentalidades, diversos olhares, múltiplas perspectivas. Sem essa âncora de uma universidade pública, um estudante pobre do interior não teria acesso à formação universitária. O protagonismo dos precursores lembra o quero-quero, a ave que assume o querer de sua terra. Assim foi feita a Universidade.
    Hoje, acolho a ousadia da menina tímida, esmaecida no tempo. Revivo a solenidade do começo, a entrada no trem rumo ao desconhecido. Não se ouve mais o apito dos trens. As tecnologias modernas produzem outros sons. Pelas viagens feitas, sei um pouco mais as lições da vida e entendo que os sonhos de agora também não cabem nos limites de uma mala modesta, enquanto os itinerários forem se realizando.
* Crônica premiada no Projeto Volver/UFSM - Concurso de Crônicas - 2012
 


Um comentário:

Anônimo disse...

Simples e esplendoroso assim como Cecília.