18.5.08

MEU RELATO

28 de abril de 2008, 11:20 hs

Eu renasci, depois da pancada que levei no caminho para a Unisinos, quando um ônibus bateu no meu carro. Senti meu corpo tonto, batido, e eu mesma sem entender o que havia ocorrido. O impacto foi tão inesperado e violento como um ritual de barbárie, quando a solenidade difusa penetra na pele e impede a intensidade do real, na sua expressão mais dura. Olhava para o ônibus que me batera e sentia a estranheza que Camus percebeu e sentiu diante do absurdo da vida.
Saí sem entender o que meu corpo sentia, meus óculos foram jogados ao chão do carro, em decorrência do impacto, e a chuva intensa, opaca, terrível, se misturava com minhas lágrimas, às quais eu não tinha intimidade, apenas dor. Quando consegui descer do carro, meus pés adentraram numa poça d’água e eu derrubei o celular, o instrumento que me tiraria daquela solidão. Tento fazer ligações para minhas filhas e nada ocorre, pois o chamado no momento não foi atendido e eu, aflita no meu instante eterno, pensava; porque ocorreu comigo? Quando consegui falar com elas, meu pranto convulso permitiu que eu me entendesse com os elos da minha vida e me sentisse confortada.
Eu estava atenta, segura, compenetrada no que ia fazer, cumprir a tarefa final, presidir a Banca de Defesa do meu orientando, e estava feliz por mais uma etapa vencida na vida cúmplice de mestre e aprendiz. A minha vida toda foi assim, foi ao magistério que me dediquei e nele realizo uma das dimensões da minha humanidade; agora, eu estava ali à espera de minha filha, do socorro, de tudo.
A chegada dos meus foi meu alívio, é a minha vida se prolongando nos que gerei e nos que foram gerados pelo que gerei. É isso! Gerei filhos e idéias e colho esse resultado com muita ternura e alegria.
A vida é uma espera e a gente aprende isso em situações cruciais. Depois, levada ao Posto de Atendimento, mais espera de quase três horas para ser atendida e medicada. Enquanto isso, eu pensava em tudo, em todos, no necessário e no contingente, mas não conseguia me libertar do barulho do ônibus que bateu no meu carro e da dor no meu corpo.
A atenção dos colegas comigo, o respeito pelo meu trabalho, se fizeram presente nos telefonemas e nas atitudes de gentileza e solidariedade. Bom saber e ouvir as falas dos que estão próximos de nós.
Mais uma lição, mais um desafio, o horizonte da vida se amplia, pois é possível acreditar na gratuidade do que se faz, na medida em que plantamos, nem sempre colhemos, mas é importante continuar...
Cecília Pires

Um comentário:

Denise disse...

Um misto compartido, agônico e solidário na decifração do sentir humano que em algum momento nos pega como que de surpresa e traz à tona o sem-fundo que somos. Inicialmente, é o que deixa ver, ou ainda, a possibilidade de sentir através do teu relato. Contudo, é justamente nas entrelinhas do dito que subjaz a profundidade do filósofo...
A angústia, ao contrário do que muitos podem pensar como uma palavra neutra - se considerarmos que é condição humana - é, no meu modo de ver, talvez por concordar com Kierkegaard, feminina.
Somos mais angustiadas, mais sensuais. Como gaia, prenhes de geração e re-nascimento.
Teu relato mostra isso, pois revela a dimensão impactante que a contigência apresenta para mostrar à necessidade que, por vezes, ela é impotente...
Precisamente neste ponto que ela, a angústia, é possibilidade. A nossa livre possibilidade de escolhas que, contemplando o passado construído, vê no vivido, prazer e contentamento. Por isso, talvez, as dores do mundo, nossas dores e, portanto, a condição agônica e trágica daquele que pensa, aponte justamente para esse novo renascer. Este sentimento feminino, prenhe de re-nascimentos é possibilidade e, nesse sentido a angústia que sentimos é sempre cura.
beijos no teu coração,
Denise