16.1.15

Intolerância, fundamentalismos e violência



     Do que tem sido informado, analisado, debatido, criticado e registrado pela mídia e redes sociais, acerca do episódio trágico de Paris, é importante que não seja esquecida a perspectiva da totalidade. Longe de querer fazer considerações transcendentais, o que me move a falar sobre o assunto, transcorridos os momentos de maior euforia e passionalidade, é o fato mesmo da lacuna que se apresenta num projeto humanista em que a igualdade, a liberdade e a fraternidade ficaram mais como adornos de bandeiras e menos como realização concreta na vida dos sujeitos.
     Ouvindo diferentes opiniões, lendo críticas abalizadas, percebo que passado o choque inicial do assassinato dos jornalistas, como uma bofetada na face de uma nação civilizada e republicanamente organizada, é possível abrir o leque das compreensões e buscar um entendimento mínimo sobre as razões que motivaram e motivam os jihadistas ou membros de facções suicidas, sejam elas de qualquer inspiração ideológica, política ou religiosa.
     Na história da humanidade, civilizada ou não, matou-se e mata-se em nome da fé, da crença em nome de Deus, de Alá, de Javé, passando por rituais de sacrifícios humanos nos sincretismos religiosos, mais diversos e terríveis. O que é mais dramático – sempre em nome de uma ideia, a serviço de uma causa, que segundo os protagonistas, requer atitudes drásticas. Os sujeitos racionais, que constroem ideias, escreveram e escrevem assim sua história.
     As cruzadas, entendidas como guerras santas, que cumpriram a “missão” de conquistar fiéis e territórios, não declaravam a nobreza de seus propósitos, justificados em nome do Cristianismo?! Os que criaram, fortaleceram e mantiveram pessoas como escravas, por serem diferentes na cor da pele ou na forma de falar e cultuar seus deuses, não agiram em nome de um fundamentalismo intolerante e discriminatório?! Como aceitar que nossos índios fossem domesticados por um discurso “competente”, na forma proselitista de pregação doutrinária, apenas porque seus hábitos e crenças não condiziam com as formas do colonizador civilizado.
     E os exemplos se sucedem infinitamente. Os episódios totalitários do século XX, em que os líderes de nações européias, sejam do leste ou do oeste, formataram os povos e as culturas, numa decisão exterminadora, não podem ser esquecidos. Em nome de que ou de quem Hitler, Stalin, Mussolini, Franco, Salazar, para ficar nos mais proeminentes, agiram numa forma de limpeza étnica ou ideológica?!
     Alguém de nós sabe o instante em que foi decidida uma declaração de ódio e extermínio entre árabes judeus?! Sabemos todos dos interesses e motivos que movem uns e outros?! Os que decidem servir como árbitros nas contendas, em que medida se mantêm numa postura de equilíbrio, de não-julgamento ao se posicionarem nas regiões de conflito? Ou permitem que seus interesses de “nações civilizadas”, em que o Capital está em jogo, interfiram no juízo decisório?!  Estará aí havendo o respeito aos ideais da igualdade, da liberdade e da fraternidade?!
     Uma outra dobra desse movimento de intolerância e violência, pode ser analisada. Qual foi o índice de publicidade, manifestação e registros dos órgãos de divulgação sobre outros episódios de massacre acerca da liberdade de expressão?  O que aconteceu com as meninas nigerianas sequestradas em Chibok, retiradas da Escola pelo grupo fundamentalista islâmico Boko Haram, que não permite às mulheres qualquer forma de esclarecimento, recebeu o mesmo destaque da Imprensa?! Por que não merece a mesma repulsa por parte do Ocidente civilizado?! O que ocorre na África não sensibiliza o mundo?!
     Para reiterar o que todos já sabemos: qualquer espécie de generalização de situações pode ser injusta. Nesta lógica, não podemos atribuir a todos os adeptos do islamismo atitudes de violência ou intolerância. O malinês, Lassana, muçulmano praticante, que ajudou clientes judeus a se esconderem numa câmara fria da loja, atacada pelo jihadista Coulibaly, afirmou eu não escondi judeus, escondi seres humanos. Este é o gesto da fraternidade.
     Há muitos lugares em que o convívio se tornou possível. Não é o fato de ser árabe ou judeu, oriental ou ocidental que torna um sujeito violento e intolerante. Será sempre o modo com esse sujeito se deixou tomar pelo ódio e a intolerância fazendo desses sentimentos o fundamento de sua vida.
     Tendo a concordar, em parte, com a fala de Slavoj Zizek, filósofo, quando diz que os culpados dos que cometeram os ataques de Paris é mesmo dos que cometeram o assassinato. Não tem que ser atribuído a outros o que eles decidiram fazer. Vale lembrar, aqui, a fala de Jean-Paul Sartre, filósofo, que dizia o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós fazemos com aquilo que fazem de nós, ou seja, somos responsáveis por nossa liberdade de escolha e ação. A decisão final é nossa.
     Numa França, em que Voltaire não pode ser esquecido por assegurar o direito de se ter a própria opinião, na frase célebre, posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las, da mesma forma, não pode ser desconsiderada a ideia de Sartre de que toda a escolha implica em responsabilidade. Os jornalistas escolheram expressar suas opiniões, com suas críticas humoradas. Com o destaque de que eles sabiam das consequências de suas escolhas. E decidiram continuar. Até o fim.
     Com isto não quero conceder a ninguém a interrupção do direito da liberdade de expressão. Ao contrário, importa afirmar o projeto humano como um projeto de liberdade. E reiterar que todos os atos têm consequências. Seria desejável que não fossem violentas.
     Sem ser Charlie e sem alinhamento aos fundamentalismos da Al-Qaeda e de qualquer tipo, a esperança é de que possamos viver num mundo de diferenças, sem os limites da intolerância e do poder discricionário. Na expectativa, além de Marx, que a história não se repita apenas como tragédia ou como farsa, mas que possa ser escrita com mais exigência humanista, nos fundamentos da liberdade e da justiça para todos.

Um comentário:

Olavo J.Bortolotto disse...

Parabéns, Cecília, pela análise profunda e clara da situação. Concordo plenamente, pois, sempre lembro que a liberdade de um vai até onde começa a do outro e, também, que as escolhas geram responsabilidades. Que bom ler o que você muito bem escreve. Forte abraço com muita saudade. Olavo