2.11.08

A propósito da experiência da dor. Uma leitura do conceito de “vida ferida” de Th. Adorno.

O exame da história humana, especialmente na versão que nos oferece a literatura grega, faz emergir ao cenário do mundo os homens esmagados pelos desígnios cósmicos, regidos por divindades cujas determinações eles são impotentes para mudar. Estão, portanto, à mercê da autoridade dos deuses e resta-lhes cumprir as determinações da vontade soberana, pois ninguém foge ao que está prescrito.
Ulisses, Prometeu, Édipo, Sísifo, Antígona são alguns dos personagens cujas tragédias pessoais movem suas vidas. Embora resistam, acabam por cumprir o desiderato já antecipado pelos oráculos em suas sábias falas.
Por quê a humanidade está afetada por males? A explicação pode estar no descumprimento de uma promessa. Epimeteu recebe o presente de Pandora e (esquecendo-se do que prometera ao irmão, Prometeu) abre a caixa; e eis todos os seres humanos mergulhados nos males que saíram de uma jarra do Olimpo. No entendimento mítico, os males não são gratuitos. Resultam da punição necessária que os deuses realizam sobre os que ousam desafiá-los. A fronteira entre a servidão e a rebeldia é tênue, na vida dos humanos, e a mediação entre o sagrado e o profano passa pelos paradoxos da inteligibilidade do mundo e da vida.
A simbologia dos mitos gregos, expressão de um entendimento do mundo, esboça projetos de vida, alimentados pelo desejo de autonomia do indivíduo. Esse desejo confronta-se com a figura da autoridade, cuja afirmação é menos de governabilidade e mais de punição. Isso evidencia a tensão existente entre a autoridade, que exacerba suas ações, e o sujeito, que se pensa livre e insubordina-se diante da exacerbação da autoridade. É evidente que a narrativa simbólica é prenhe de significações, além da metáfora. Busca explicar a radiografia de um modelo, a partir do princípio da autoridade e da lei.
O que se constitui num problema para a humanidade e revelador de sua decadência é a deposição de uma racionalidade assentada em virtudes, substituída pela racionalidade baseada em vícios. A idéia de que os homens vitimaram os homens, construindo instrumentos de suplício, encontra vários registros na história, cujos requintes atestam a fragilidade da espécie que se tornou sapiens. Talvez se deva dizer que esse é o primeiro fracasso do esclarecimento.
Ao inaugurar o poder, o homem inaugura a dimensão do limite na vida coletiva. Isso não requer, necessariamente, a experiência da dominação e do sofrimento, embora os registros históricos sejam ricos de relatos de torturas, indicadores de que a autoridade abandonou o bom senso pela totalidade violenta. E o artefato jurídico-político chamado Estado é um dos principais atores desse cenário trágico. Os reis, os generais e os ditadores, com seus instrumentos de punição, não são menos algozes do que Zeus, torturador de Prometeu.
Edith Hamilton escreve sobre Prometeu: “Seu corpo estava acorrentado, mas o espírito estava livre. Recusava submeter-se à tirania e à crueldade”. E, certamente, o que mais enfurece a razão totalitária e seus epígonos é a resistência da vítima, cujo sofrimento não a torna covarde diante da vontade de potência das autoridades. Então, somos racionais? Sim, apesar de matarmos, aniquilarmos e destruirmos o outro humano, que nos incomoda e que se torna um empecilho para nossos projetos...
Adorno no seu livro Minima Moralia: Reflexões da Vida Danificada (1951) apresenta uma tese que contrapõe a reflexão de Aristóteles, Magna Moralia. Adorno continua seu trocadilho fazendo menção ao "conhecimento triste" em relação ao argumento d’ "o Alegre Conhecimento", de Nietzsche. Pode-se entender essa como uma obra de exílio, em que constata e registra, as agruras da vida lesada, ferida, da vida marcada pela dor. É um texto originalmente escrito para o qüinquagésimo aniversário do seu amigo e colaborador Max Horkheimer.
"A vida não vive", declara o epigrama de abertura do livro. Adorno ilustra isto em uma série de curtas reflexões e aforismos, relatando uma espécie de crônica de um cotidiano aflito por uma sociedade industrial aniquiladora. Seu relato detém-se em mostrar a dificuldade de vivermos uma boa vida, porque a sociedade se tornou desumana, desqualificando a vida.
Há uma espécie de amargura ou nostalgia no espírito de Adorno ao escrever esse livro, ao considerar desde a natureza subversiva de brinquedos, passando pela desolação da família até decadência da conversa. Adorno mostra como as menores alterações de comportamento cotidiano podem ser comparadas com a maior parte dos eventos catastróficos do século XX.
Seria possível considerarmos que sua lente ao olhar o mundo se agiganta pelo sofrimento, como refere um dos seus aforismos: "A lasca no seu olho é a melhor lente de aumento". Ou seja: a experiência da dor traz para o sujeito uma capacidade de ver melhor o mundo quebrado, a vida ferida. Mas será só isso? Constatada essas questões, que fazer? Talvez essa questão não se apresente para Adorno, ou para os frankfurtianos, na medida em que eles abandonaram a idéia de utopia positiva, pelo negativo do processo. Na Dialética do esclarecimento, no Excurso II, lemos que “os fatos pertencem à praxis”; poderíamos, então, perguntar: como entender ou realizar a práxis, a partir da vida ferida?!
O argumento de Adorno sobre fragmentos apontando o caminho da desumanidade pode ser igualado a seu raciocínio acerca das sobras do espelho esmagado da filosofia. Uma espécie de pós-filosofia trabalhando contra o "todo falso" da filosofia propriamente dita. Minima Moralia se apega à visão judaico-cristã-Iluminista de resgate, que é designada o único ponto-de-vista válido com o qual engaja um mundo profundamente perturbado. (wikipedia). Ao aproximar a “luz messiânica” de críticas sobre uma paisagem de consumada negatividade, Adorno tenta "projetar negativamente uma imagem de utopia”.
Seu questionamento ocorre face ao projeto grego de Ciência, que era a busca da boa vida, tornando-se na Modernidade uma Ciência de controle e de formalização da vida, em que aparece uma vida desqualificada, cujo maior algoz é a idéia de progresso.
É importante observar que os filósofos que se sensibilizaram pelas vítimas do progresso e das experiências totalitárias fizeram seus registros, a partir de uma espécie de desencanto com a razão, uma razão que falhou face aos imprevistos das governabilidades.
Salvo melhor juízo, percebe-se uma diferença de olhares entre alemães e franceses, neste particular, do pós-guerra. Os alemães dedicam-se a registrar ou condenar as experiências aflitivas da humanidade, enquanto que os franceses, além da denúncia, participam de uma espécie de engajamento político face aos aniquilamentos da subjetividade. Destacaria, aqui, Sartre, na sua particularidade de cidadão francês, Camus e Derrida, como afrancesados, por adoção, envolvidos com uma contingência mais aguda.
Há uma significativa expressão de Adorno, em Minima Moralia, ao afirmar que existe uma linha reta que vai do estilingue à bomba de megatons, mas não há nenhuma que vá da barbárie à civilização. Essa afirmação procura atestar uma crítica à racionalidade, evidenciando que a dominação pela ciência e tecnologia é processual, na dinâmica do progresso, orientada pela razão instrumental, enquanto que a dominação na experiência histórica da humanidade se apresenta como momentos cíclicos, podendo a humanidade, na análise própria de Benjamin, voltar à barbárie a cada momento do tempo.

*** Na questão própria da categoria da barbárie, podemos mencionar os sentido do termo ao tempo do Império Romano, quando bárbaros eram os não civilizados, os não participantes da civitas da vida civil. Logo, a barbárie indicada pelo texto da Mínima Moralia não era aquela da simples oposição à civilização, mas uma barbárie sofisticada pelo uso instrumental da razão, que desqualificou a vida, ferindo-a no seu âmago, naquilo que contempla o conceito de emancipação.
Se pensarmos a sociedade civil como o outro do Estado, podemos entendê-la em uma outra dimensão. Não apenas como um segmento social, articulado na perspectiva de adesão a normas, mas como um lugar cuja dinâmica trabalha a moralidade esquecida pelo Estado. Os sujeitos da sociedade civil não exercem as funções da governabilidade, ainda que exerçam funções políticas. A cidadania pauta-se por convicções, por avanços e recuos face às contingências vividas. Temos exemplos desse portar-se da sociedade, na história do processo civilizatório. Presenciamos um recuo da sociedade civil quando o Estado apresenta-se demasiado autoritário sobre seus grupos, com a intenção clara de solicitar apoio, quando utilitariamente precisa da legitimação e do reconhecimento de um coletivo maior. Mas, também, podemos registrar os avanços dessa mesma sociedade ao enfrentar as decisões prescritivas da governabilidade, exigindo o respeito à condição humana.
Aqui podemos trazer a contribuição de Hannah Arendt, cuja experiência de exílio se assemelha a de Adorno, ainda que eles não se aproximem nas formas práticas ou teóricas, por razões da vida concreta.
Para Arendt, a política tem uma significação necessária para a vida humana, pois é o lugar onde o homem aparece, é o espaço público que efetiva a experiência da liberdade e da vida civil. Tudo aquilo que interdita o espaço da política pode comprometer o futuro da humanidade, na medida em que a política é o vir-a-ser-mundo. É a política que permite o nascimento do mundo. É lógico que tudo aquilo que avilta o espaço desse aparecer do humano impede a preservação da herança; neste caso a violência é a derrota lógica do poder, porque impede a organização da vida civil; aí reside sua denúncia ao totalitarismo, como expressão da barbárie, enquanto o desaparecimento da política.
O problema do totalitarismo é que ao eliminar a liberdade elimina o homem, não permite um novo começo, um novo nascimento e isso é a barbárie. Quando o terror aparece já não há mais adversários, só vítimas. A lei se torna a vontade de um, do Führer, que é móvel, que rompeu com a lei.
Uma sociedade civil organizada postula a justiça face às situações que a agridem na sua plenitude e condição originária. É o aparecer das organizações grupais e coletivas, articuladas pela teia da intersubjetividade, posicionadas contra procedimentos degradantes, aniquiladores da subjetividade.
Eu imagino que não ficaremos imunes a concepções que nos emocionam, que dirigem nossas vontades, que apelam para nossos raciocínios, porque esse é o nosso modo de gênero e de espécie. É a forma como aparecemos no tempo e no espaço. Mas temos que ficar atentos para podermos ser mais alegres e ousados. Ou seja, será preciso revisitar as situações vividas, para aprendermos que o mercado por si só não se mantém, se as subjetividades não recorrerem a ele. Para a Filosofia é essencial mais dúvidas do que certezas, pois do contrário ergueríamos um monumento à infalibilidade das interpretações.
Busco, ainda, nesse tempo, a presença forte dos motivos éticos, das razões das escolhas humanas e, por isso, não apenas lamento a história que vivemos, como um lamento de desespero. Entendo que a inserção do sujeito no mundo vivido é a forma da vida ativa, pois viver é correr riscos e aprender com a história o que serviu de interdito para a humanidade.
Se não quisermos mais holocaustos, temos que decidir a forma de impedi-los, pois os aniquilamentos continuam e não apenas um ato de vontade sustará tais círculos de fogo. É preciso acreditar em novas escrituras da história da humanidade, sem repetir tantos desacertos. Para isso é preciso refletir sobre o que fizemos e estamos fazendo,conforme reitera H. Arendt.

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